Publicado em 31 de julho de 2018
Lágrimas, risos e aplausos inflamados marcaram o encerramento da 29ª edição do Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga, com a montagem exclusiva da zarzuela Vendado es amor, no es ciego, de José de Nebra, encenada na noite do último domingo, 29, no Cine-Theatro Central. A plateia, que já lotava as escadarias do Central uma hora antes do espetáculo, teve a oportunidade de assistir a uma estreia internacional: é a primeira vez que essa zarzuela é apresentada em sua totalidade em tempos modernos, um marco para as quase três décadas de história do Festival.
Marcus Medeiros, supervisor do Centro Cultural Pró-Música/UFJF e diretor artístico do Festival, conta que um dos principais objetivos do evento é aproximar o público da música erudita, pouco comum no cotidiano. “Nós precisamos desmistificar essa ideia de que a música erudita é um bicho de sete cabeças”. Para isso, Medeiros conta que o festival teve o cuidado de mesclar os tipos de música das apresentações que aconteceram durante a semana, com espaço para um concerto de choro, por exemplo. Além disso, “trazer espetáculos de apelo visual, como essa ópera, e as palestras de apresentação do professor Rodolfo Valverde, já são um incentivo para o público e uma forma de criar essa aproximação”.
E parece que a ideia deu certo. Parte do público frequentava pela primeira vez um evento do gênero e já se via ali, nos olhares admirados, que o contato não seria o único. É o caso do estudante do ensino médio, Vinícius Vasconcelos. “Essa foi a primeira ópera que assisti e não poderia ter sido uma escolha melhor. O espetáculo atraía o público, seja pelos toques de humor, pela mistura com o fandango, ou pela própria qualidade técnica da equipe”, diz.
Servidor do IAD/UFJF, Eduardo Malvacini destaca a fala inicial de Rodolfo Valverde. “Através dessa conversa que ele teve com o público antes da ópera, foi possível entender melhor o contexto de criação da peça e as diferenças temporais”, conta. “Eu sou parte desse público a ser formado. Não tinha a menor ideia do que era uma ópera até vir para cá e agora percebo parte de um mundo que até então eu não percebia.”
Já o estudante de História na UFJF Leonardo Campos Gomes destacou a qualidade da peça escolhida. “Eu nunca tinha ido antes, tanto pela falta de oferta desse tipo de espetáculo, quanto por certo receio de pensar que não saberia entender muito bem essa esfera de arte menos popular. Porém, adorei a experiência e, sem dúvida, irei a todas as outras óperas e eventos com temáticas afins que eu souber”, afirma. “Embora seja minha primeira ópera, não precisa de experiência para dizer que aquela foi uma produção muitíssimo elaborada e bem executada. Se existe o belo, aquela ópera com certeza se encaixa nessa definição.”
Homenagem
A montagem foi uma homenagem aos 250 anos de morte do compositor barroco espanhol José de Nebra (1702-1768), um dos mais importantes da primeira metade do século XVIII. Autor de referência, Nebra atuou como organista da capela real espanhola e foi responsável por reconstruir o arquivo de música do Alcázar de Madrid, que sofreu grandes perdas após um incêndio durante a noite de natal de 1734. Músico de grande versatilidade, sua obra caminhou por diversos gêneros: além das zarzuelas – gênero de ópera espanhol que mescla dança a partes instrumentais, vocais e declamadas – ele também produziu óperas propriamente ditas, comédias de santos, comédias de magia e autos sacramentais, entre outros, mesclando elementos tradicionais da música espanhola com a ópera italiana.
De temática mitológica, Vendado es amor, no es ciego é uma representação da própria condição humana em relação ao amor. Sofrendo pela morte de Adônis e buscando se vingar de Diana, Vênus, interpretada pela mezzo-soprano espanhola Nerea Berraondo, decreta o sacrifício de todos aqueles que não se renderem ao amor. A deusa encontra no mortal Anquises, vivido pelo contratenor italiano Enrico Vicinanza, semelhanças com o seu amado que morreu. Anquises, no entanto, despreza a determinação de Vênus e se rende à sua rival, Diana, interpretada pela soprano Luane Voigan, de Juiz de Fora. Anquises ainda é disputado pela ninfa Eumene, representada pela soprano brasileira Rosana Orsini, que morre por amor.
A direção artística é de Rosana Orsini, com cenografia da italiana Giorgia Massetani, regência do maestro Marco Brescia, direção de orquestra pelo espanhol Roberto Santamarina e direção cênica por Henrique Passini.
A essência de Vênus
Não é de hoje o fascínio pela figura da deusa do amor. Inocência e luxúria, impetuosidade e controle, virtude e pecado: são contrastes sedutores ao olhar. Sua representação quase sobrenatural de sonho e beleza idealizada permanece tanto no imaginário popular como no artístico ao longo dos anos. É o caso de obras aclamadas, como “O nascimento de Vênus”, de Boticelli, e “Vênus de Milo”, de Antioquia.
A Vênus da mezzo-soprano espanhola Nerea Berraondo não ficou para trás. A artista arrancou suspiros e lágrimas da plateia – até pedidos de casamento foram ouvidos em meio aos aplausos finais. Segundo Maria Eduarda Pereira dos Santos, aluna da Faculdade de Direito da UFJF, o sucesso está na qualidade da interpretação de Nerea, que conseguiu capturar a essência de Vênus, seus maneirismos e personalidade. “A personagem tem esse tom impetuoso, de fazer o que precisa ser feito para conseguir o que quer. A gente conhece os defeitos dela, sabe que ela é detestável, mas ainda assim ela é irresistível. Não sei como a atriz conseguiu capturar tão bem a essência da personagem”, afirma.
O universitário Leonardo Campos destaca a paixão na interpretação da personagem: “Ela é uma artista muito bem preparada e apaixonada pelo que faz, senão não faria com tanta maestria esse papel. Ela me arrancou lágrimas pela sua voz e dramatização”.
Nerea, que saiu do palco para receber saudações calorosas do público, comenta: “Acredito que a peça tenha sido um êxito porque é uma obra que fala diretamente para as pessoas, é algo que o público entende. Tem de tudo: maldade, amor, risos, humor, um pouco de tudo”.
E em Vendado es amor, no es ciego, o humor ficou em boa parte por conta da dupla Fabíola Protzner e Alexandre Pereira, intérpretes de Brújula e Titiro, personagens humanos da trama da zarzuela, que garantiram diversão e gargalhadas, conquistando o público com sua ótima atuação. Ao final da apresentação, foram eles que conduziram um quase “bis” com todo o elenco e equipe técnica no palco para os aplausos entusiasmados finais da plateia privilegiada dessa montagem única e especial.
Laura Santos