NO TEMPO DAS ZARZUELAS

Publicado em 25 de julho de 2018

Exemplar raro de gênero de ópera espanhola tem sua primeira encenação moderna realizada em Juiz de Fora

Foto: Raissa Segantini

A 29ª edição do Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga, que acontece de 22 a 29 de julho em Juiz de Fora, já pode ser considerada um marco na história desse tradicional e premiado evento. O Festival será palco da zarzuela Vendado es Amor, no es Ciego, do compositor espanhol José de Nebra (1702-1768) – homenageado da edição. A apresentação é um marco não apenas pelo ineditismo no Brasil: “Existem relatos de gravações de excertos da peça, mas é a primeira vez que ela será encenada em sua completude. A versão de referência, dessa forma, passa a ser a nossa”, afirma o professor da Faculdade de Música da UFJF, Rodolfo Valverde.

A montagem, com exclusividade para o Festival realizado por Pró-reitoria de Cultura e Centro Cultural Pró-Música/UFJF, tem a direção artística da soprano brasileira Rosana Orsini, que também atuará na produção como intérprete. Produzir e interpretar uma zarzuela do século XVIII – “substancialmente diferente (s) das [zarzuelas] do século XIX e pouquíssimas vezes representadas” – é um desafio para Rosana Orsini. Por ser um gênero específico de música, é imprescindível contar com intérpretes com experiência em música ibérica dos séculos XVII e XVIII, já que é uma linguagem muito particular.

O elenco internacional contará com a mezzo-soprano espanhola Nerea Berraondo e o contratenor italiano Enrico Vicinanza, além de cantores brasileiros selecionados para a montagem. O espanhol Roberto Santamarina é o responsável pela direção da orquestra, enquanto o brasileiro Marco Brescia é o maestro preparador e contínuo e Henrique Passini responde pela direção cênica.

Foto: Raissa Segantini

Os ensaios para a apresentação no domingo estão acontecendo diariamente no Central, exceto nesta quinta-feira, 26, quando será realizado no local o workshop de cenografia (Maquinaria Barroca), com Giorgia Massetani e Alicio Silva, em que os participantes construirão a cenografia de Vendado es amor, no es ciego.

A zarzuela surgiu na Espanha, no século XVII, e seu nome inspira-se no Palácio de La Zarzuela, o pavilhão de caça rodeado de amoreiras silvestres (as zarzas), próximo a Madri, onde foram realizadas as primeiras apresentações do estilo. Pouco conhecidas fora da Espanha, as zarzuelas são comparadas ao Singspiel alemão [como A Flauta Mágica, de Mozart], ou até mesmo à opera [saiba mais sobre as origens do gênero na página …].

Sobre a montagem que encerrará o Festival no dia 29, a soprano antecipa que “em termos de referências visuais, por se tratar de uma temática mitológica, cuja música tem tanto influências italianas como espanholas”, a produção se inspira nas pinturas do italiano Corrado Giaquinto, que foi pintor da corte espanhola em uma época muito próxima à da estreia de Vendado es Amor, no es Ciego, composta por José de Nebra em 1744. Gianquito, que teve obras expostas no Museu do Prado, em Madri, mostra um pouco da visão do compositor sobre a mitologia clássica.

 

Qualidade

Foto: Raissa Segantini

Em razão dos 250 anos de seu falecimento, o aragonês José de Nebra é o homenageado pelo Festival em sua 29ª edição.  Na corte de Felipe V, ele foi nomeado organista aos 17 anos e aos 22 já tocava na Capela Real. Como compositor, celebrizou-se por escrever diversas obras musicais dramáticas, as zarzuelas, das quais poucas sobreviveram até hoje. A qualidade de sua obra preservada, porém, o distingue como um dos mais importantes compositores dramáticos da península ibérica na primeira metade do século XVIII.

De acordo com Rosana Orsini, a zarzuela Vendado es Amor, no es Ciego apresenta grande influência da música popular espanhola do século XVIII. A diretora artística viu na história pouco conhecida do autor a oportunidade de falar um pouco mais desse gênero no 29º Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora, trazendo ao público uma obra-prima da música teatral europeia, com profissionais especializados na área.

No ano passado, o público lotou o Cine-Theatro Central com a produção – também sob direção artística de Rosana Orsini – em homenagem ao compositor italiano Claudio Monteverdi, que viveu há 400 anos e produziu diversas óperas. Para este ano a expectativa também é grande. “Como se dizia na época, La musica española levanta hasta um muerto! Esperamos que o público tenha o mesmo prazer em ouvir e ver essa produção como nós estamos tendo em prepará-la”, diz a diretora artística.

 

Origens

Foto: Raissa Segantini

A ópera nasceu na virada para o século XVI e, no decorrer do século seguinte, apresentou grandes desdobramentos. As primeiras zarzuelas foram produzidas nesse momento: em meio a uma profusão de novas possibilidades e gêneros que se desenvolviam a partir da ópera. Além da tradicional mistura de canto, música e dança, a grande diferença das zarzuelas para as óperas está na presença de diálogos falados. A Inglaterra e a Espanha, os maiores expositores do novo gênero, já tinham uma ligação forte com o drama (influência de Shakespeare e de Calderón de la Barca) e resistiam à implantação de um drama totalmente musicado e cantado, explica o professor Rodolfo Valverde.

As primeiras experimentações envolvendo o novo gênero surgiram na corte do Rei Felipe IV da Espanha, grande amante de teatro e apresentações musicais. Foi no Palácio do Prado, em 1657, que a primeira zarzuela foi encenada, celebrando o nascimento do príncipe herdeiro: El laurel de Apolo, com texto de Calderón de la Barca e composição de Juan Hidalgo. Ela inaugura o estilo de ópera espanhola que se desenvolve durante a Era Barroca, com temáticas mitológicas, alegóricas e históricas. O nome zarzuela, inclusive, surgiu nesse período: com o objetivo de criar um ponto de encontro entre a corte e os artistas, o rei construiu o Palacio de la Zarzuela, que ganhou o nome baseado nas árvores típicas dos arredores, chamadas de zarzas.

A época de ouro das zarzuelas deu lugar à ópera italiana durante a Dinastia Bourbon: neto de Luís XIV, o Rei Sol francês, Felipe V desconhecia a língua espanhola e favorecia composições italianas. Nesse período, José de Nebra compôs zarzuelas em sintonia com o gosto aristocrático, utilizando a linguagem musical italiana. Essa adaptação possibilitou que as zarzuelas ganhassem uma sobrevida no período, mas, na segunda metade do século, elas praticamente desapareceram, substituídas pela ópera italiana, que falava diretamente à corte, e pelas tonadilhas – gênero curto, com diálogos falados e personagens contemporâneos satirizando questões sociais. “As tonadilhas tinham uma temática mais contemporânea, que abordava o conflito entre patrões e empregados. Desse modo, a linguagem era mais popular e falava para a burguesia, o proletariado e as classes mais desfavorecidas”, ressalta Rodolfo Valverde.

Foi só no século XIX que as condições políticas e sociais favorecerem a retomada das zarzuelas. A eclosão do sentimento de nacionalismo na Europa, intensificado na Espanha após a invasão de Napoleão, incentivou a produção de zarzuelas, representando um gênero tipicamente espanhol e atendendo à demanda nacionalista do momento. Elas retornam revitalizadas, trazendo características musicais e temáticas do romantismo.

Também surgiram gêneros e subgêneros correspondentes às zarzuelas em outros países europeus. Na Inglaterra do século XVII, as masques ganharam força, em especial com obras de Henry Purcell. Enquanto as zarzuelas expressavam o drama através da música, nas masques as peças teatrais continham atos musicais alegóricos inseridos entre os atos.  Dentro do contexto iluminista, também surge o singspiel, na Alemanha – cenas musicais fundidas com diálogos falados – e a ópera cômica, na França, que intercala passagens musicais e diálogos declamados.

A colonização hispânica também foi muito importante para a sua difusão – elas se propagaram velozmente através de adaptações de acordo com os gostos de cada local. É o caso das Filipinas, com as sarswelas. Na América do Sul, a migração das zarzuelas espanholas não se deu de forma tão acentuada. Embora elas existissem no Brasil, ainda era algo muito incipiente. “Nós ainda não tínhamos os recursos para isso, mas, no Peru, por exemplo, já existiam composições consistentes no início do século XVIII”, observa Valverde.

 

A ÓPERA E SUAS VARIANTES

Ópera italiana (dramas musicais cantados) – Surge na virada para o século XVI

Zarzuela (canto, música, dança e diálogos) – Desenvolve-se na corte de Felipe IV, na Espanha de meados do século XVII. É retomada na Espanha do século XIX.

Tonadilha (teatro cantado, de curta duração e temas cotidianos e cômicos) – Torna-se um gênero independente na segunda metade do século XVIII, na Espanha.

Masques (inclui números musicais entre os atos dramáticos) – Correspondente inglês da zarzuela, fins do século XVI

Singspiel (cenas musicais fundidas com diálogos falados) – Alemanha, século XVII

Ópera cômica (cenas musicais intercaladas com diálogos falados) – França, século XVIII

 

Reportagem Laura Santos e Laura Sanábio

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