Publicado em 23 de abril de 2018
Um show nunca é igual ao mesmo show – e isso vale ainda mais para Caetano Veloso. Em seu reencontro com o público juiz-forano em duas apresentações no último fim de semana – após muitos anos afastado dos palcos locais – o cantor não passou indiferente pelas plateias que lotaram o Central na última sexta-feira, 20, e no sábado, 21, para vê-lo acompanhado de seus três filhos, Moreno, Zeca e Tom, na turnê familiar Ofertório. Casa cheia nas duas noites, as apresentações reuniram clássicos do patriarca a composições dos três rebentos em formato acústico intimista. Mas se na sexta a apresentação transcorreu tranquila, sem arroubos no palco ou na plateia, no sábado o show terminou com palavras de ordem política e plateia dividida.
O show de sexta era a apresentação extra, aberta após se esgotarem os ingressos de sábado – que a princípio seria a única de Ofertório em Juiz de Fora. Público atento, a cortina vermelha do Central escondia o despojamento dos palcos de Santo Amaro, cidade natal do cantor baiano: um cenário minimalista de fundo vermelho vivo, com a figura de um círculo, uma espécie de corda cruzando o palco de um lado ao outro e um tecido que pendia como uma cortina do alto. No palco, os quatro músicos se apresentam sentados lado a lado, com seus instrumentos, reforçando o clima familiar desse encontro musical. Tom, o filho mais novo, já se apresenta há mais ou menos dois anos, Zeca, segundo Caetano, estreou nos palcos nessa turnê, e Moreno, com mais experiência, já segue a carreira musical por mais de 20 anos.
Caetano abre a noite com Alegria, Alegria, dando a entender que aquele poderia ser mais um show tradicional do cantor. A plateia, ainda fria e tímida, acompanha nos trechos mais conhecidos. Logo, porém, a atmosfera muda, e o que toma conta do espetáculo é um álbum vivo de fotografias dos Veloso. Cuidadosamente tecida, a organização do repertório foi montada para construir uma narrativa afetiva entre todos os membros, desde o mais jovem nos palcos, Tom, passando por Zeca e Moreno, e desaguando no pai Caetano e seus mais 50 anos de carreira.
Muito à vontade no palco, a família transforma as sensações individuais e coletivas vividas por eles em melodias preenchidas por quatro vozes. Zeca surpreende com sua voz suave e composições melodiosas, como em Todo Homem; Tom e Moreno se aproximam da tonalidade vocal do pai e se aventuram no samba no pé, arriscando uns passinhos bem na frente do palco, para diversão da plateia. Caetano dá sua sambadinha em How beautiful could a being be e depois puxa um tímido e resistente Zeca – e o único carioca da família – para sambar com ele em Um Tom. Também houve espaço para o funk, com a ótima e contagiante Alexandrino.
Entre os desacertos da apresentação, uma entrada errada em Genipapo Absoluto, o que leva Caetano a se desculpar, dizendo que estavam há um mês sem fazer o show e que a apresentação de sexta em Juiz de Fora era a reestréia de Ofertório, e isso os deixava nervosos. Também lamentou que não contassem com todos os instrumentos do show, pois o caminhão da turnê foi roubado.
Nada disso impediu que a apresentação transcorresse lindamente, com o afeto entre pai e filhos transbordando em canções, homenagens, em música com que Moreno presenteou o pai e em canções que o pai fez para as mães dos meninos e cantos de celebração da terra familiar, a Bahia. Um dos mais belos momentos foi o cruzamento de gerações em Ofertório, composta em 1997 para Dona Canô, mãe de Caetano, e música que empresta o nome à turnê, que Caetano apresentou também como uma homenagem à fé de seus três filhos. Dos sucessos eternos do cantor, o show trouxe algumas poucas canções. Além de Alegria, Alegria, o público ouviu A tua Presença Morena, Trem das Cores, Oração ao Tempo, Um Canto Afoxé para o Bloco de Ilê e Leãozinho (esta, na voz de Moreno).
Tensão
A cumplicidade entre os músicos se repetiu na apresentação de sábado, 21, que contou com um público bastante participativo. Repertório e roteiro – com as brincadeiras e dancinhas que se repetem na turnê – foram os mesmos, mas o clima esquentou a partir do momento em que Caetano e filhos se manifestaram a favor de Lula. Se no show de sexta Caetano não se pronunciou – e apenas uma voz feminina se ergueu na plateia antes mesmo de Caetano começar a cantar – a situação foi bem diferente no sábado.
No decorrer do show, o músico protestou a favor da libertação do ex-presidente Lula, mas foi no fim do espetáculo que houve mais tensão. Ao se manifestar com palavras de ordem “Marielle, presente” e “Lula livre”, ecoadas também pelo filho Moreno – reacendendo a polêmica no momento do bis – o cantor dividiu o público, que reagiu com vaias e aplausos. Alguns, em coro, gritavam “Lula livre”, enquanto outros espectadores deixavam o teatro. Em meio à confusão, Caetano continuou falando ao microfone, porém, não era possível ouvir com clareza tudo o que dizia. O cantor chegou a comparar a plateia do Central com a de uma apresentação gratuita que fez em Fortaleza, afirmando que, talvez por essa não ser de classe média, como no Central, não ouviu vaias do público no Ceará.
Polêmicas à parte – já esperadas, aliás, de alguém que se posiciona politicamente nas redes sociais, como Caetano – as plateias das duas apresentações no Central não podem negar que assistiram a um show de afetos e talentos, no qual brilhou, límpida e ainda jovem e cheia de energia, a voz bela e singular de Caetano Veloso, em plena forma musical nos seus 75 anos.
Matheus Medeiros e Laura Sanábio (Edição: Izaura Rocha)
Fotos: Laura Santos